ESPECIAL | Entrevista
Hiago Garcia:
A busca do sonho de representar o Brasil
Faltam apenas quatro minutos para o atleta pernambucano pedestrianista de marcha atlética, Hiago Garcia, aos 20 anos, realizar o grande sonho da sua vida. Alcançar o índice exigido na modalidade (que não é tão fácil como aparenta) e representar o Brasil na próxima Olimpíada do Rio, em 2016.
Para isso, em janeiro de 2014, deixou sua terra natal, Petrolina, para treinar e estudar na Rússia. E está perto do seu objetivo.
Nesta entrevista, Hiago fala da sua odisseia, desde o início da carreira (oriundo de família humilde), das dificuldades adaptação para chegar onde chegou, alimentando o gosto de “quero mais”, mesmo como vencedor na sua Pátria.
“A forma como o Brasil trata os atletas me motivou
a ir embora”
o Brasil trata os atletas me motivou
Onde e quando você iniciou a sua carreira?
Iniciei a minha carreira aos 13 anos, na Associação Petrolinense de Atletismo (APA). Meu primeiro treinador foi o professor Marciano Barros. Uma amiga da escola, Tatiane, que treinava marcha atlética, me convidou para treinar. Eu só conhecia essa prova por ter vista na Olimpíada de Pequim, em 2008. O treino era no parque municipal da cidade. Resisti ao convite no início, porque tinha vergonha. E mais, o local do treino era longe de casa e meus pais não tinham como pagar a passagem de ônibus. Tatiane, minha amiga, insistiu e ofereceu carona de bicicleta dela. Então, decidi participar, mesmo sem pedir aos meus pais.
E como os seus pais reagiram?
Um dia, minha mãe, que se chama Silvana, perguntou onde eu estava, respondi que tinha ido pra aula de Educação Física, porém ela já sabia de tudo. Eu é que não sabia que ela trabalhava como “gari” (varredoura de rua) no mesmo parque onde eu treinava. Felizmente ela concordou que eu continuasse treinando. Meu pai, Paulo Garcia, sempre muito rígido, não queria. Dizia que o atletismo não tinha futuro, “mas se fosse no futebol ele deixava”. Chegou a colocar cadeado na bicicleta para que eu não a usasse para ir treinar. Aí, passei a ir correndo os quatro quilômetros que separavam minha casa do local do treino. Na volta, pegava carona na bicicleta dos amigos.
Quando você percebeu que ali começava a sua carreira?
Depois de duas semanas de treino, o professor Marciano fez um teste pra saber se eu tinha boa condição. Pra minha surpresa, ele disse que se eu quisesse treinar pra valer tinha futuro. Fiquei tão obcecado com a modalidade que todos os dias, antes e depois da escola, ia pra lan house para assistir vídeos da modalidade. Depois saia correndo pra casa e chamava os cinco irmãos (três meninas e dois meninos) para o quintal e brincava de competir com eles. Depois de apenas 6 meses de treinamento, eu consegui ser campeão pernambucano. Um mês depois ganhei o campeonato brasileiro, com 14 anos, na competição da categoria até 17 anos.
E a evolução, como se deu?
Observei que na marcha atlética há diversas técnicas de marchar. Por exemplo, na geralmente adotada pelo latino americano a “passada” é mais curta e tem a elevação do joelho maior que a dos europeus, a fim de adotar um estilo próprio. Resolvi então que só iria assistir aos vídeos de campeões olímpicos e mundiais. A minha referência passou a ser Olga Kaniskina ( medalha de ouro nas Olimpíadas de Pequim, 2002 e prata em Londres, 2012). Aqui tive a alegria de conhecê-la, uma atleta de 1,60 metros de altura aproximadamente.
E como você explica esse “pulo” Recife-Rússia?
Eu estava treinando no Recife, com Vanthauze (Vanthauze Marques, treinador de atletismo), quando disputei uma competição aqui na Rússia. Foi quando conheci um atleta daqui, Aleksander, nos tornamos amigos e passamos a nos comunicar pelas redes sociais. Ele me falou sobre o centro olímpico, onde treinam atletas de todo o país e perguntou se eu tinha interesse de vir treinar aqui. Eu perguntei: como assim? Ele disse que podia tentar, mas que não ia ser fácil, pois ali só treinavam atletas russos. Agora, eu sou o único estrangeiro treinando no centro olímpico. A minha família não criou obstáculos para a minha vinda, mas houve muito choro, especialmente da minha avó materna e da minha mãe. E eu disse pra minha avó “esse é meu sonho”. E prometi que ela ia ver o neto campeão olímpico.
O que te motivou a deixar Pernambuco, ficar longe da família e dos amigos e ir para a Rússia?
O que mais me motivou mesmo a deixar minha terra é a forma com que o Brasil trata os atletas. Eu quero que você publique isso. Apesar do programa bolsa atleta do Governo Federal que paga aos contemplados da categoria nacional (primeiro, segundo e terceiro colocados), o valor de R$ 925,00 esse valor não é suficiente para comprar suplementos, ter acompanhamento de um psicólogo, fisioterapeuta, psicólogo, médico e mais algumas despesas. Eu não tinha patrocínio, nenhum outro apoio. Não tinha, sequer um local adequado pra treinar. Tive que me mudar pra Recife, depois que fui campeão brasileiro e vice-campeão sul-americano, porque o Santos Dumont é a única pista do estado em boas condições e mesmo assim ainda encontrava dificuldades para ter acesso à pista pra treinar...
... E na Rússia, como lhe tratam?
Aqui tenho encontro com psicólogo toda semana. Isso ajuda a aumentar a resistência mental para não desistir durante uma prova. Tive que fazer uma pequena cirurgia para retirar um cisto no joelho, não paguei nada por isso e fui muito bem atendido. Eles não tinham essa obrigação comigo, por ser estrangeiro, mas sinto que eles gostam de mim e reconhecem o meu esforço. A fisioterapeuta me acompanha mesmo sem ter lesão. Se eu sair da dieta, a nutricionista logo vem perguntar o que foi que comi. Ela reconhece qualquer sinal de mudança na alimentação, como uma vez em que comi biscoitos recheados (riso).
E como foi a sua adaptação? Quais as tuas principais dificuldades? A alimentação, por exemplo, o bode assado de Petrolina...
Ah, eu não gosto de bode (risos). Sempre tive dificuldades com alimentação, não comia peixe, nem legumes. Aqui, fui me acostumando a comer de tudo, com orientação da nutricionista.
E o clima frio. Você se adaptou?
A primeira dificuldade foi o frio. A adaptação ao clima. Saí do Recife no verão com temperatura de 30 graus. Aqui a temperatura era de 27 graus negativos. Logo que cheguei o meu ouvido destro (direito) estourou. Fiquei surdo por um mês. Tive que fazer fisioterapia. Eu fiquei louco e me perguntei o que eu estava fazendo aqui? Mas consegui superar o problema com o clima.
E como se comunicava com as pessoas?
A segunda dificuldade foi o idioma. Eu sabia falar só algumas palavras. Mas consegui uma “bolsa” na universidade para estudar o idioma russo. Estudei por um ano, mas não foi nada fácil. Agora já tenho fluência.
Saudades do Brasil?
Não só do Brasil. Outra dificuldade é a saudade de casa, da família, dos amigos... Mas isso também é preciso superar. O carinho e amor dos russos comigo foi fundamental na minha adaptação. Eles me deram muita atenção. Coisa que não tinha no Brasil. A imagem que se tem deles no Brasil é de que se tratam de pessoas frias, duronas. Mas é engano, são bem amigáveis.
Você além de treinar também estuda? O que você está estudando?
Eu estudo Educação Física na Universidade do Estado de Penza. Eles “pegam pesado” no ensino do esporte. Até os esportes de inverno, todos, são estudados. Aqui, quando você é um atleta, que falta por causa dos treinos ou viagens, você vai à direção da universidade e pede uma declaração permitindo que a gente possa se ausentar das aulas quando está disputando competições representando a universidade. Depois posso ligar para o professor ou consultar os colegas pra saber sobre o assunto estudado. Vou à biblioteca do setor de Educação Física e retomo os temas das aulas que perdi. É bem tranquilo assim.
Como é a sua rotina de treino?
Eu treino pela manhã e à tarde. O primeiro treino é às sete e meia da manhã. O segundo às quatro da tarde, todos os dias. Treinos aos domingos só acontecem quando se aproxima alguma competição. A distância total que treinamos diariamente é bem longa, bem superior ao que treinava no Brasil. Não posso revelar a quantidade de quilômetros porque é parte da estratégia dos treinadores. Eles não gostam que sejam revelados detalhes.
Quais são as principais vantagens de treinar na Rússia?
A primeira vantagem é poder treinar no Centro Olímpico de Marcha Atlética da Rússia. Aqui existem centros para as várias provas de atletismo. Estou num centro para a marcha atlética, mas existem outros para provas de arremesso, para provas de velocidade etc. As outras vantagens eu já falei, o acompanhamento de especialistas que dão todo apoio...
... Outras vantagens?
Sim. Aqui tenho um treinador e uma treinadora que me acompanham. Os dois foram grandes atletas. Aleksey Voyevodin foi medalha de bronze nas Olimpíadas de Atenas em 2004, bicampeão mundial e campeão europeu na prova de 50 quilômetros da marcha atlética; Yulia Sergeevna participou das Olimpíadas de Atenas e de vários mundiais na prova de 20 quilômetros. Outro detalhe importante é que tenho a companhia de atletas que estão no “topo” do ranking mundial. Isso serve como referência para o meu desempenho.
Você tem evoluído no seu desempenho nas provas da marcha atlética? Quais são as suas marcas atuais?
Evolui bastante. Na minha categoria eu era o primeiro do ranking no Brasil e achava que estava muito bem, mas com as marcas que tinha eu estaria fora da elite aqui na Rússia. Seria da equipe B. Minha melhor marca nos 10 quilômetros era 47.10; agora é de 42.09. Nos 20, era 1:50.00; e agora é 1:28.13. Diminui em 22 minutos o tempo da prova. O índice para participar das Olimpíadas é de 1:24.00. Vou ter que trabalhar bastante para diminuir mais quatro minutos, mas acho que consigo. Até o dia 3 de julho de 2016 eu posso tentar conseguir o índice. A meta é alcançá-lo em março, no campeonato da Eslováquia.
Jovens na sua idade querem passear, namorar e divertir-se. Você está namorando? Em Petrolina ou aí na Rússia?
Aqui na Rússia os jovens namoram, mas não podem demonstrar isso dentro dos ambientes de treino, na escola, nos gabinetes e outros. Não tem aqueles agarramentos de namorados em qualquer lugar. Aqui não existe isso. (Insisto se Hiago está namorando). Não, não estou namorando. Eu tinha uma pessoa em Petrolina, mas acabei porque tinha que correr atrás do sonho.